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julioperezcesar

JUDY

Sexta-feira passada – hoje é quarta – quase perdemos a cocota, a calopsita que demos para o pai e que herdamos depois do seu passamento. A Mari estava limpando o apartamento e deixara a janela da sala um pouco aberta. Ela voou da gaiola até a porta do quarto onde eu estava trabalhando. Encontrando-a fechada, pairou no ar e quando percebeu a janela aberta tomou o rumo desta.

A Mari entrou em pânico, saindo em disparada atrás dela, escada abaixo. Ela pousara no asfalto em frente ao prédio e o temor era que um carro a atropelasse. Escutei a exclamação da Mari – Meu Deus! – e sai do quarto, pois já imaginava que teria acontecido. Corri até a janela da sala e pude ver quando ela voou baixo, circundando a árvore frondosa de frente de casa, entre as duas pistas da avenida 7 de setembro. Corri também para fora, batendo a porta às minhas costas. Por um momento temi que a Mari não tivesse pegado as chaves de casa. Por sorte ela havia pego, senão teríamos ainda mais um problema, pois a porta não tem maçaneta. Só com chave conseguimos abri-la.

Lá fora, nem sinal dela, mas ouvíamos de vez em quando seu chamado. Ela respondia à minha voz e ao meu assobio, como se habituara fazer quando em casa.

Mas onde ela estava?

De cor cinza confundia-se com a folhagem das árvores de frente de casa.

O vizinho do outro lado da rua saiu para fora, curioso com a movimentação. Lhe explicamos o que havia acontecido e ele passou a nos ajudar a procurá-la. Era quase certo que ela estivesse encarapitada na árvore frondosa. Mas onde?

Por fim, a Mari a avistou num dos galhos mais baixos, ainda assim muito longe do nosso alcance. Tranquilamente cortava com o bico a folhagem em volta. Não atendia a meu chamado como normalmente fazia. Pedi uma vara comprida para o vizinho e ele trouxe uma, com uma espécie de cesto de arame na ponta, com que eles colhiam abacates. Tentei alcança-la com essa vara mas ela ainda estava um meio metro mais alta. Decidi, então, assustá-la para ver se ela voava para uma posição mais baixa. Mas, ao contrário, ela se afastou para um galho ainda mais alto. Passei, então, a jogar meu chinelo para fazê-la descer. Após algumas tentativas ela acabou voando. Ao contrário do que supúnhamos. Abalou-se num voo alto para dentro da quadra em frente do apartamento. Pela altura e disposição do voo, a demos praticamente por perdida. Decidi, no entanto, fazer a volta na quadra, a ver se ela tivesse pousado mais baixo dessa vez e eu conseguisse a atrair com meus chamados.

Mas nem sinal dela!

Voltei para casa desolado. A Mari também estava inconsolável. Sentia-se culpada pelo ocorrido e eu mesmo a havia culpado inicialmente. Devia ter tido mais cuidado ao abrir a janela. Devia tê-la prendido antes de abrir. Ela estava voando com bastante desenvoltura dentro de casa, apesar de uma das suas asas ter as penas cortadas. Nós havíamos resistido à ideia de cortar-las ainda mais. Considerávamos uma violência privar um passarinho do que lhes é mais característico: voar. Só depois da perda é que nos demos conta da ingenuidade dessa concepção: ela era um pássaro exótico. Não sobreviveria na natureza. Havíamos lhe facilitado a fuga para o que poderia ser considerada a sua morte. Eu, sobretudo, me martirizava por isso. Em Gaurama ela já havia dado uma demonstração do que poderia fazer.

Uma manhã, saí para pegar o jornal no pátio e ela se desprendeu do meu ombro, num voo alucinado pela rua. A sorte que ela seguiu a linha desta, pousando no chão apenas algumas casas adiante e não vinha, nesse momento, nenhum carro. Corri no seu encalço e quando ela pousou, assustada e sem rumo, chamei-lhe, o que a fez se acalmar e vir na minha direção, de forma que eu a pude pegar.

Dessa vez, contudo, a coisa foi diferente e bem mais grave.

A Mari pôs a gaiola na sacada, com a porta aberta, na esperança de que ela voltasse. Gravei no celular um áudio do meu assobio. Pensava deixá-lo tocando em looping por trás da gaiola aberta. Mas a bateria acabou e eu tinha de voltar ao trabalho.

Passamos o dia naquela apreensão. De vez em quando ouvíamos o seu chamado. Saía, então, para fora, mas a direção do som era incerta e durava pouco. Ela voltava a ficar quieta e já nãos sabíamos se era ela ou outro da mesma espécie, de alguma casa vizinha.

Ao fim do dia, fui caminhar e aproveitei para dar mais uma volta, agora na quadra de baixo, atrás do prédio, para onde a Mari parecia tê-la visto voar ainda de manhã.

Chamei-a, mas nada dela responder.

Estava anoitecendo e eu já tinha voltado da caminhada quando a vi pousar na janela do 9º andar do prédio ao lado de casa. Conheci-a pelo voo inseguro de pássaro de gaiola, desabituado com as imensidões da liberdade.

Fiquei empolgado, correndo para fora com a roupa que estava em casa, a uma hora que já estava mais frio. Comecei a chamar e ela respondeu algumas vezes, confirmando que era ela. Tinha esperança de a resgatar ainda aquela noite. Mas em vão. Ela não dava demonstrações de querer sair de onde estava.

Toquei naquele que supus fosse o apartamento onde ela havia pousado – 601 – contando as janelas, mas quem atendeu foi uma moça cuja janela ficava duas ou três abaixo. Naquele momento ainda não estava certo se ela tinha pousado no 8º ou no 9º andar. Foi por ela que fiquei sabendo, no entanto, que os apês acima ainda não estavam ocupados. O prédio era relativamente novo e havia unidades ainda não vendidas. Fiquei ainda mais uma hora, imagino, na rua a chamando, tentando fazê-la descer, para irritação da Mari que queria ir na irmã que havia nos convidado para jantar. Mas eu não estava com cabeça, nem vontade para sair dali. Tinha receio de que ela voasse e na escuridão não tivesse referência para onde ir e a perdêssemos de vez. Por fim, no entanto, acabei entrando e me acalmando quando me dei conta de que provavelmente ela fosse passar a noite lá. Acostumada a dormir cedo, como de resto todo passarinho, quando cai a noite – eu a punha num quarto escuro quando escurecia – convenci-me que ela não sairia de lá até o dia seguinte.

Aquela hora a Mari já havia se aborrecido de esperar e cancelara o jantar na irmã.

Foi melhor assim. Aquele dia havia sido muito agitado e no seguinte eu queria levantar antes do sol nascer para tirá-la de lá.

No dia seguinte, levantei em torno da 5:30 quando o sol de outono ainda não havia despontado. Vesti-me melhor do que a noite passada e fui para frente do prédio vigiar o seu despertar. À medida que o dia clareava e que os pássaros começavam a se agitar na sua luta diária pela busca de alimento, comecei a chamar de forma que ela voltasse a ter em mim uma referência caso decidisse fazer o mesmo que seus congêneres. Não estava certo ainda, contudo, de que ela ainda estivesse lá. No entanto, logo consegui a avistar. Ela estava na janela de um andar acima do que havia suposto inicialmente. Na janela do apartamento 901. Via-a quando se movimentava, especialmente, o rabo comprido que ficava para fora do parapeito da janela.

À medida que o sol ia subindo, percebia que ela ficava mais agitada, respondendo ao meu chamado, como costumava fazer em casa, antes de voar. Precisava ficar ali até ela se decidir. Já eram 7 horas quando dei-me conta de uma coisa: havia um enorme anúncio na frente do prédio, com o telefone do corretor que estava comercializando as unidades desocupadas.

- Claro! Por que não pensei nisso antes? Ele tem as chaves do apartamento!

Não tive dúvida. Liguei para o número, embora fossem apenas 7 horas de uma manhã fria de sábado. Era quase certo que eu o acordaria, mas, pensei, vendedor não pode refugar ligação, seja ela a que hora for.

De fato, ele não refugou e de fato ele ainda estava na cama. Expliquei-lhe a situação o melhor que pude para aplacar-lhe, imaginava, a dupla frustração: de tê-lo acordado a uma hora daquelas para o que não era uma venda, mas sim o pedido insólito de um maluco que perdera sua calopsita e lhe pedia para abrir o apartamento para a resgatar.

- Olha, agora ainda estou na cama...

- Sim, eu imaginei. Me desculpe.

- ... mas aí pela 8, 8 e meia eu posso passar aí.

- Ok, eu agradeço – ainda que a minha vontade fosse lhe dizer:

- Venha logo, por favor, pois ela pode voar a qualquer momento e eu temo que não consiga a pegar.

Mas preferi não forçar a barra e conter a minha ansiedade, embora a possibilidade de ocorrer o que eu temia se mostrasse cada vez mais real. Judy – nome com que de repente senti necessidade de a chamar, não sei por que (até então ela não tinha propriamente um nome. Chamávamo-la de cocota, pitoca, cococa) – aguentou bem até as 8 horas. Quando o sol começou a atingir e a fome decerto a apertar – pássaro exótico dificilmente ela teria conseguido se alimentar no dia anterior – ela enfim se desprendeu de onde estava e começou a voar para a direita. Em pânico, saí correndo, chamando-a e a acompanhando nesse voo que percebi era de um animal já um tanto debilitado, pois ela tentava atender o meu chamado, mas uma corrente de ar a impedia de vir a meu encontro, empurrando-a para dentro da quadra, entre os dois prédio em que ela se encontrava. Sem conseguir ir numa direção ou noutra, acabou indo em direção ao prédio que tinha na frente, chocando-se com a empena deste. Sem encontrar onde se agarrar, começou a cair, batendo inutilmente as asas rente a parede lisa do edifício. Acompanhei-a nesse movimento desesperado até ela cair no que parecia ser um terraço no primeiro andar.

Dei a volta no prédio e comecei a teclar aleatoriamente números que supunha fossem de apartamentos – 101, 102, 201, 202.. – até me dar conta, olhando para dentro do edifício, onde havia as caixas de correspondência com a numeração dos apês, que essa só começava a partir do 301. Toquei o 301 e nada! O 302, a mesma coisa. Assim como o 303. Desisti da série dos 300 e fui para o 400, até que o 404 me respondeu. Expliquei o mais calmo que pude a situação, pedindo para me deixar entrar. Não entendi direito a sua resposta, mas através de chiados e estalos do interfone, descobri que o apartamento do síndico era o 502. Toquei nesse número e ninguém atendeu. Voltei para o 404 para me certificar do número informado. Confirmado este, voltei a tocar o 502. Dessa vez com sucesso. A voz de um homem me atendeu. Expliquei-lhe de novo a situação, ao que me respondeu, para meu alívio, que sim, ela abriria a porta para mim.

Agradeci e esperei. Não sabia, contudo, se ele iria abrir através do interfone ou se estava descendo. Pela demora, calculei que estivesse descendo. Nesse ínterim, ia até a esquina do prédio dar uma olhada se Judy não resolveria levantar voo. Nada indicava, contudo, que ela tencionasse fazer isso. Comecei a pensar no pior: que aquele espaço não era um terraço, mas um telhado inacessível ou um poço de luz. Ou que, se terraço fosse, ali vivia um cachorro ou um gato esfomeado. Enfim, o pior.

Voltei para a frente da porta de entrada do edifício e nem sinal do síndico. Decidi tocar de novo o 502. Quando conclui a chamada, vi movimentação no fundo do corredor. Cancelei a chamada aguardei. Ele abriu a porta e, para minha surpresa, em suas mãos, vi a cabecinha familiar de Judy, me olhando assustada. Ele sorria, vendo a minha alegria ao vê-la são e salva.

Não sabia como lhe agradecer.

Disse-me que ela, de fato, estava onde havia lhe relatado e que conseguira a pegar porque também tinha calopsita em casa e sabia como lidar com elas.

Com todo cuidado, tomei-a das mãos dele e pus sob o casaco, porque ela estava agitada e assustada com tudo o que havia passado nas últimas 24 horas. Agradeci-lhe de novo e voltei para casa com meu troféu.

Não suportava a ideia, nem tanto de a perder, mas de que ela, livre, não sobreviveria na natureza, pois pássaro exótico que era não teria companhia para se proteger e lhe ensinar como se alimentar e escapar dos predadores.

Finalmente Judy tinha um nome e aquele havia sido seu batismo de fogo.

squina do prédio dar uma olhada se Judy não resolveria levantar voo. Nada indicava, contudo, que ela tencionasse fazer isso. Comecei a pensar no pior: que aquele espaço não era um terraço, mas um telhado inacessível ou um poço de luz. Ou que, se terraço fosse, ali vivia um cachorro ou um gato esfomeado. Enfim, o pior.

Voltei para a frente da porta de entrada do edifício e nem sinal do síndico. Decidi tocar de novo o 502. Quando conclui a chamada, vi movimentação no fundo do corredor. Cancelei a chamada aguardei. Ele abriu a porta e, para minha surpresa, em suas mãos, vi a cabecinha familiar de Judy, me olhando assustada. Ele sorria, vendo a minha alegria ao vê-la são e salva.

Não sabia como lhe agradecer.

Disse-me que ela, de fato, estava onde havia lhe relatado e que conseguira a pegar porque também tinha calopsita em casa e sabia como lidar com elas.

Com todo cuidado, tomei-a das mãos dele e pus sob o casaco, porque ela estava agitada e assustada com tudo o que havia passado nas últimas 24 horas. Agradeci-lhe de novo e voltei para casa com meu troféu.

Não suportava a ideia, nem tanto de a perder, mas de que ela, livre, não sobreviveria na natureza, pois pássaro exótico que era não teria companhia para se proteger e lhe ensinar como se alimentar e escapar dos predadores.

Finalmente Judy tinha um nome e aquele havia sido seu batismo de fogo.


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