A ARTE REVOLUCIONÁRIA DO SEU ACHILES
- 20 de abr. de 2021
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Atualizado: 21 de abr. de 2021
Nesses dias que tenho passado na casa do meu pai tenho tido a oportunidade de refletir sobre uma série de coisas, entre elas sobre a natureza da arte.
Meu pai, depois que se aposentou, revelou-se um artista. Com peças usadas de veículos e outras sucatas começou de uma hora para outra a produzir peças de arte que depois foi espalhando pelo terreno. Tornou-se comum para os vizinhos, ao passarem pela frente da casa, se depararem com esse acervo a céu aberto.
Por esses dias que tenho passado aqui, em decorrência da própria saúde deles que vem requerendo de nós, seus filhos, uma dedicação mais próxima da que vínhamos tendo, permitiram-me a um só tempo apreciar com mais vagar a qualidade das peças produzidas e da natureza local, a qual realmente é inspiradora. Movido por esses estímulos, fiz algumas fotos das peças e, depois, editando-as, chamou-me a atenção não apenas a qualidade das peças em si, como o fato de que aquilo que eu estava fazendo também era uma expressão de arte. Imbuído por esse espírito e pela vontade de registrar alguns recantos que há por aqui, decidi comprar uma máquina fotográfica com melhor qualidade da que tenho no celular. De repente me deparo com essa estranha e inquietante necessidade: a necessidade de fazer arte! A mesma necessidade, acredito, que tenha movido meu pai a começar a produzir essas peças num determinado momento da sua vida, em que as premências da sobrevivência haviam lhe dado um certo refresco.
Na esteira dessas reflexões, constato, em primeiro lugar, que a arte pode se expressar de diversas maneiras: seja pelas esculturas de sucatas que meu pai produz, seja pela fotografia com que depois as registrei, seja pela escrita que há algum tempo pratico, seja pelo canto – outra arte que meu pai aprecia desde sempre – a arte é uma necessidade de expressão que de uma hora para outra pode nos atingir e que terá de encontrar em nós uma forma de expressão. Normalmente aquela que mais se afeiçoe às nossas habilidades, disposições de espírito e recursos.
Em segundo lugar, essa necessidade de expressão nada mais é do que a manifestação de uma outra necessidade: a necessidade de comunicação. Comunicação do que somos e do que sentimos da forma mais autêntica possível. Ou seja, comunicação da nossa identidade.
Como a comunicação, para se tornar efetiva, requer, de um lado, o emissor, para completar o ciclo, precisa encontrar, do outro lado, quem a recepcione e que entenda a mensagem de alguma forma, o receptor.
Na sociedade mercantilizada em que vivemos, essa recepção, normalmente dá-se pela aquisição, pelo receptor, da mensagem emitida. Com a conceituação da arte como a expressão da identidade do artista, a aquisição desta reduz a mensagem, e por consequência o seu emissor, à mera mercadoria, fazendo com o que processo da produção artística e a tensão que a preside sejam descarregados, para alívio do sistema, quando a venda acontece. Com isso o processo é domesticado, adaptado à logica mercantilista que atualmente parece a tudo presidir. É o que acontece com a arte comercial hoje em dia. A obra, uma vez vendida, perde a sua potência revolucionária.
E que potência seria essa?
A arte conserva sua qualidade revolucionária quando não é levada ao mercado de consumo. E não é levada, não porque não contenha as qualidades que a tornem desejável de ser adquirida, mas por uma outra razão qualquer, como a que leva o emissor, por exemplo, como no caso do meu pai, não ter interesse em comercializá-la. Ele a produz apenas para saciar a sua necessidade de expressão artística. Necessidade que encontra a sua satisfação, no próprio ato de produzir e na recepção daqueles que admiram o resultado. Esse é o instante em que a arte conserva sua dimensão revolucionária, porque ela, como expressão da identidade do seu produtor, sinaliza para uma outra forma de vida. Uma forma de vida que encontra no ato de produzir e submeter à apreciação pública o seu sentido, para além da mera expressão monetária. Uma forma de vida que nega a sociedade capitalista, onde as relações sociais são, essencialmente, mediadas pelas relações de produção, como afirma Marx. Relações que nos reificam - nos transformam em coisas - à custa da necessidade de sobreviver. Necessidade que passa a nos governar como atividade central e a única que detém valor, relegando às nossas pulsões criativas o papel de meros hobbies, sem conteúdo valorativo.
É óbvio que a necessidade de sobrevivência nos impõe o trabalho. Mas deverá esse se tornar o centro da vida?
Uma sociedade que garantisse a todos o mínimo para viver com algum conforto e tranquilidade não poderia ser sustentada pelo esforço comum de todos para se atingir esse mínimo e, a partir daí, permitir a seus membros poderem se dedicar a outras atividades? Seria esse o ideal de uma sociedade comunista? Qualificativo esse que hoje virou quase xingamento por conta da ideologia capitalista que perpassa todas as nossas relações e que não nos permite conceber um mundo onde possamos viver sem precisar de tanto. Um mundo onde outras formas de vida mais satisfatórias sejam possíveis.
É que a voracidade capitalista precisa cada vez de mais lenha na fogueira – nossos braços, corpos e mentes – para sustentar um modo de vida que apenas alguns irão desfrutar. Modo de vida que, a rigor, nem precisamos para viver bem, mas que existe justamente para alimentar a fogueira da vaidade e do egoísmo do “chegar lá”, embora possamos passar a vida toda nos esfalfando, sem conseguirmos sequer arranhar a bolha desse lugar, para só ao fim descobrirmos que fomos enganados.
Há uma juventude aí que começa a se questionar algumas coisas e é bom que o faça. O planeta não aguentará por muito mais tempo esse modo de vida.
Precisamos pensar e nos questionar se será mesmo, como nos quer fazer crer o capitalismo, a partir da queda do Muro de Berlim, que há só um modo de vida possível?
O trabalho tem que ocupar essa centralidade que ocupa em nossas vidas?
Não há uma outra sociedade possível, que seja mais justa, humana, solidária e satisfatória para todos?
A arte do seu Achiles nos diz que sim.

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