Em sua coluna no UOL, o jornalista Rubens Valente revela que, no último dia 25/02, completou 33 anos o dia em que o Quartel General do Exército em Brasília fez circular, através do Noticiário do Exército, seu veículo oficial de comunicação, um editorial intitulado “A verdade: um símbolo da honra militar” sobre Jair Bolsonaro, jovem tenente, então com 32 anos, que respondia a inquérito por atentado à bomba contra instalações militares. Ainda que após esse editorial Bolsonaro e seu colega de farda, também processado, fossem absolvidos pelo Superior Tribunal Militar, naquele ano de 1988 – o editorial circulou em 25/02/1988 – não deixa de ser instigante saber, dado o que se viu depois, qual era o pensamento do Exército a respeito de Bolsonaro e seu colega na ocasião. Não seria à toa que mais tarde, Geisel, a se referir ao Capitão reformado o chamasse de um mau militar.
Como demonstra o artigo de Rubens Valente, a publicação foi motivada pela indignação do ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves com Bolsonaro, o qual, após as revelações sobre o seu plano pela Revista Veja, em outubro de 1987, havia negado os fatos de que era acusado pela revista. As investigações posteriores, realizadas pelo Exército, contudo, o desmentiram. Leônidas já havia criticado publicamente a revista, afirmando que “conheço a minha gente”. Um dia depois da veiculação do editorial, Leônidas reconheceu: “ a Veja estava certa e o ministro estava errado”.
Não obstante esse passado de triste memória, Bolsonaro, 30 anos depois foi eleito presidente da República, com o apoio das Forças Armadas, as quais, alegam em sua defesa, a insatisfação com o PT por conta da instauração, durante o governo Dilma Rousseff, em 2012, da Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes da ditadura.
Veja que nesses dois episódios o que salta aos olhos é o que eles têm em comum: a verdade! Ocorre, no entanto, que entre uma verdade – a de um mau militar, indigno de integrar os quadros das Forças Armadas, tanto que foi devidamente reformado após a absolvição no STM – e a outra – dos crimes praticados durante a ditadura – as Forças Armadas tenham preferido ignorar aquela do que aceitar as conclusões desta. Em assim agindo, duas verdades acabaram sendo sepultadas, dado que uma meia verdade não passa de uma grande mentira.
Não foi à toa, pois, que os militares não hesitaram em embarcar no governo Bolsonaro, o qual, desde a campanha primou pelo esquecimento da verdade, afinal Bolsonaro foi eleito com base em fake News e intensa campanha de difamação e mentiras contra seu adversário, Fernando Haddad, do PT, com o beneplácito do TSE, mídia corporativa e o STF.
O resultado não poderia ser outro, eis que a mentira costuma não produzir bons frutos: o desastre do governo Bolsonaro, que tem na mentira uma prática de governo, seja contra os dados do desmatamento na Amazônia, seja no enfrentamento da pandemia da Covid-19, seja sobre o desempenho da economia.
O engraçado, se não fosse trágico, é que Bolsonaro, justamente elegeu durante sua campanha o tema da verdade como mote, citando, com frequência e até diria com uma certa estranheza para nós que não conhecíamos os fatos acima narrados, especialmente do famigerado editorial, a passagem em 8:32, do evangelho de João, quando Cristo nos ensina que só a verdade liberta – “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” -, numa reação tardia ao sentimento recalcado de humilhação provocado pelo editorial publicado pelo Exército há mais de 30 anos.
O que Bolsonaro estaria querendo dizer para as Forças Armadas, ao invocar justamente essa passagem bíblica? Quereria dizer que, em sendo eleito presidente, provaria de forma definitiva que os fatos narrados naquela ocasião não eram verdadeiros? Ou estaria proferindo uma ameaça ao Exército, que iria atrás de todos aqueles que no passado o condenaram? Ou ainda: estaria ele querendo dizer que a eleição, como uma verdadeira prova de Deus, como nas antigas ordálias – coisa de um pensamento medieval tão ao seu gosto – seria a prova definitiva da sua inocência, de que a sua honra seria restabelecida por esse fato?
Esta última hipótese, me parece, a mais provável, dado que conveniente também aos próprios militares que embarcaram no governo: a de que o poder limpou Bolsonaro de toda mácula do passado, restabelecendo de forma mágica a “verdade” dos fatos, da qual agora o poder com que foi investido, o unge de todo mal, e numa histeria coletiva, tão ao gosto da outra banda que também o apoia, os evangélicos, iria fazer com que o capitão, o antigo bunda suja – denominação no meio do militar que não progrediu na carreira - restitua a pureza das instituições, enlameadas pela política e o enxofre comunista.
Só mesmo essa histeria e irracionalidade, com as conveniências do poder, afinal ninguém é de ferro – que o digam as toneladas de picanha, litros de cerveja e leite condensado com que os militares são tratados; a direita mercantilista, com as privatizações a preço de banana; o Centrão, com os cargos e verbas orçamentárias e os evangélicos, com a pauta de costumes – para fazer com que essa gente ainda avalize o governo do capitão.
É o que acontece quando a verdade vira apenas uma palavra sem sentido, já não correspondendo à realidade dos fatos (250 mil mortos pela Covid-19, por exemplo, perde concretude pelo seu gigantismo). Torna tudo possível nesse reino da fantasia: um mau militar tornar-se chefe supremo das forças armadas, o povo defender aqueles que o esfolam e as instituições fazerem de conta que cumprem seus papeis de defesa da democracia.
Sobre estas últimas, aliás, é de suma importância, de vez em quando, que elas tenham a oportunidade de oferecer algumas cabeças em bandejas para serem queimadas na fogueira santa da democracia – Sara Winter, Daniel Silveira e outras arraias miúdas estão nessa conta - para manter o circo da fantasia de que ainda vivamos numa democracia aberto e funcionando. Afinal, como dizem os americanos do norte – nossos verdadeiros algozes por trás dos panos dessa ópera bufa: o show não pode parar! Enquanto o capitão e sua trupe vão perpetrando sua nefasta agenda de ódio e destruição.
PS: na conta da verdade violentada podemos ainda creditar o livro de cabeceira do capitão, A Verdade Sufocada, de Carlos Brilhante Ustra, notório torturador, o qual, também ele, no circo de fantasias que se tornou o Brasil desde que os crimes da ditadura não foram devidamente apurados, dá a sua versão dos crimes cometidos, a ponto de ser homenageado em plena Câmara dos Deputados, em 2016, por ocasião do impeachment da presidente Dilma Rousseff, pelo atual presidente, sem qualquer reação daquela que, desde então, deixou de ser a morada da nossa triste, ingênua e frágil democracia.
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