Na edição do último dia 07/05/2023, a capa do caderno de política do jornal Folha de São Paulo traz a seguinte manchete: “Governo Lula aprova benefícios em série a suspeita de liderar cartel alvo de TCU e CGU.” No subtítulo, o contraponto da empresa: “Estatal Codevasf afirma que aditivos visam assegurar continuidade da prestação de serviços.”
Trata-se de aditivos que a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba) firmou com a Engefort de prorrogação ou “reinício” de obras nos Estados do Amapá, Bahia, Ceará, Paraíba, Sergipe e Tocantins. Empresa esta última alvo de acusações pelo TCU e CGU por irregularidades em obras de pavimentação entre os anos de 2018 a 2021.
Ao longo da matéria ficamos sabendo que a Codevasf foi entregue pelo então presidente Jair Bolsonaro ao Centrão em troca de apoio no Congresso. E, em seguida, que a maior parte dos contratos da estatal com a empreiteira foi abastecida por emendas parlamentares.
São sabidas as dificuldades que o atual governo enfrenta no Congresso, especialmente na Câmara Federal, para a votação de matérias de seu interesse, as quais, em última instância são do país, já que foi o programa do atual governo que foi sancionado nas urnas no último pleito e precisa ser implementado. Dificuldades estas, de acordo com o Presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, decorrente da demora do governo em atender aos pleitos da base aliada, quais sejam, indicações de apadrinhados políticos para cargos nos ministérios e nos Estados, bem como a liberação das verbas decorrentes das emendas parlamentares. Emendas que se tornaram, sob a gestão Bolsonaro, e graças ao orçamento secreto, um verdadeiro orçamento paralelo, controlado pelos deputados para atender aos seus redutos eleitorais, sem qualquer preocupação de alinhamento com o necessário planejamento e visão de país que o governo federal deve ter sobre os investimentos da União.
Com a derrubada pelo STF, ao final do ano de 2022, das chamadas emendas RP9 – nome técnico para as emendas do orçamento secreto - dos 19,4 bilhões previstos para esse ano para atender a essas emendas, 9,8 bilhões voltaram para o Orçamento dos Ministérios e os outros quase 10 bilhões, turbinaram as chamadas emendas individuais. (Não obstante, os 9,8 bi perdidos pelos deputados voltaram à gestão destes num arranjo político que garantiu que a aplicações desses valores pelos Ministérios observasse as indicações dos parlamentares.)
Em 2023, a previsão do total das emendas é de 46,3 bilhões, das quais R$ 28,9 bilhões são emendas individuais e de bancada, ambas de execução obrigatória, desde a malfada gestão de Eduardo Cunha à frente da Câmara Federal, de forma que ao governo não cabe outra alternativa senão cumprir o que foi acordado, liberando as verbas de acordo com o cronograma da execução do orçamento.
Não é de hoje que a Codevasf tornou-se a principal destinatária dessas emendas. Estatal criada na Ditadura Militar para o desenvolvimento das regiões às margens do São Francisco, sob o governo Bolsonaro teve a sua área de atuação ampliada para estados a mais de 1.500 km das margens do rio, tais como o Ceará, Rio Grande do Norte e o Amapá, área de influência de políticos do Centrão. Não é de hoje também que os órgãos de fiscalização apontam irregularidades, seja na execução dos contratos, seja na liberação das verbas. Não obstante a empresa continua operando e, ao governo, que precisa de apoio parlamentar, fica o constrangimento de efetuar os repasses indicados pelos parlamentares, pelo menos, até que os órgãos de fiscalização batam o martelo em relação à higidez da empresa. Até lá o governo tem de cumprir os acordos firmados, ainda que sob risco político de ver a sua imagem associada a eventuais desvios que se cometa na aplicação dessas verbas.
Daí a importância da atuação dos órgãos de fiscalização, tais como a CGU, o TCU – em conjunto agora com os TCEs -, o Ministério Público, Agências Reguladoras, os quais existem justamente para isso: zelar pela boa aplicação do dinheiro público, auxiliando os agentes públicos bem intencionados, os quais, muitas vezes, por pressão política acabam justamente cedendo a essas pressões, tornando-se, senão coniventes com situações-limite quanto à legalidade, menos rigorosos, vamos dizer assim.
Na minha experiência de 15 anos como auditor de campo do controle externo do Tribunal de Contas do Estado do RS – para quem não sabe o controle externo encontra-se regulado nos artigos 70 a 75 da CF, servindo como braço técnico do Poder Legislativo, o verdadeiro titular desse controle – não era raro que um servidor ou um gestor público, quando nos deparávamos com irregularidades cometidas na gestão ou condutas que podiam abrir o flanco para elas, diziam se sentir aliviados que levássemos tais casos a relatório, pois só assim se livrariam do ônus político da correção, imputando ao Tribunal de Contas a responsabilidade. Seja este ônus decorrente de alguma atitude antipática que o gestor teria de tomar perante a sua comunidade, como uma eventual atualização da planta do IPTU; seja contra os servidores, por conta de algum pagamento irregular; seja contra às forças políticas locais, fossem elas oriundas de correligionários, oposição ou lideranças da sociedade local – a nós não competia a perquirição da origem dessas pressões políticas.
Se isso ocorre em pequenas comunas, que dirá na Administração Federal, a quem compete a gestão das verbas bilionárias do orçamento público.
Com o avanço do Legislativo sobre o orçamento federal, durante o governo Bolsonaro, o qual cedeu espaço a este por conta da sua debilidade moral – Bolsonaro cedeu ao Centrão quando os pedidos de impeachment se avolumaram e o caso Fabricio Queiroz ameaçava chegar ao seu núcleo familiar – e a atual composição do Congresso Nacional, com predominância de uma conformação política de direita, quando não de extrema direita, não alinhada, portanto, com o atual governo, de conformação de centro-esquerda, a articulação política do governo Lula encontra grandes dificuldades na Câmara Federal para criar uma base de apoio aos seus projetos, mesmo cedendo espaço no governo. Mais do que cargos, o que os deputados querem são as verbas do orçamento federal para as suas bases eleitorais, sem qualquer alinhamento com uma visão de país, nem tampouco com o controle sobre a higidez da aplicação desses recursos. O que encarece ainda mais a importância da fiscalização dos órgãos de controle externo.
Não foi à toa, aliás, que o TCU, através Acórdão de Plenário 518/2023, de 23/03/2023, decidiu que a fiscalização sobre a regularidade das despesas efetuadas na aplicação de recursos obtidos por meio de transferência especial pelo ente federado é de competência do sistema de controle local, incluindo o respectivo tribunal de contas, desde a promulgação da Emenda Constitucional 105, de 12 de dezembro de 2019; – Item 9.2.1 da decisão -, dado o volume que estas ganharam nos últimos anos – em 2022, mais de R$ 3 bilhões e, como vimos, para 2023, algo em torno R$ 28,9 bilhões - e sua pulverização Brasil afora.
Em apertada síntese, podemos dizer, portanto, que os órgãos de controle externo, no exercício da sua missão institucional de fiscalizar a boa aplicação dos recursos públicos, livres das ingerências políticas a que muitas vezes os órgãos de execução estão submetidos, contribuem, em última instância, para a defesa da democracia no país, na perspectiva do restabelecimento do equilíbrio entre os poderes da República e da função planejamento da ação do Estado, com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, ao desenvolvimento nacional integrado, à erradicação da pobreza e à redução das desigualdades sociais e regionais, nos termos do art. 3º da CF.
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