Sempre soubemos que os políticos mentem, mas o que assistimos nos últimos 4 ou 5 anos, desde que o bolsonarismo ganhou a centralidade do debate público, é algo sem precedentes. Adocicadas com um nome chique, Fake News, as mentiras que o bolsonarismo comete e divulga, usando especialmente as redes sociais, não têm precedentes na história.
No entanto, enquanto essas mentiras circulavam entre os bolsonaristas e seus seguidores, os danos que causavam não tinham maiores consequências. Quanto muito depunham contra a reputação e a idoneidade moral e intelectual de quem dava crédito a essas lorotas e as passava adiante. Quando, contudo, Bolsonaro, contra todas as previsões e probabilidades, tornou-se presidente do Brasil, essas mentiras tornaram-se risco de vida. Risco que, não bastasse em si o desastre que representava a ascensão ao poder de um grupo político de aloprados despreparados, teve ainda a sua gravidade elevada à potência máxima pela pior crise sanitária dos últimos 100 anos. O que, no caso brasileiro, se materializou nas atuais quase 700 mil mortes provocadas pela Covid-19. Cifra que certamente só atingimos, de um lado, pela inépcia desse governo que se despede – com a graças de Deus e do voto popular -, mas também pelo seu deliberado propósito de induzir as pessoas em erro através de todas as manifestações estarrecedoras do presidente da República, seja contra a vacina, seja contra a gravidade da peste.
Nunca é demais lembrar que logo no começo da epidemia o presidente a denominou de “gripezinha”, pela qual ele passaria sem maiores consequências graças ao seu “histórico de atleta”. Ou quando declarou que não tomaria a vacina porque esta poderia transformar as pessoas em jacaré – metáfora para qualquer tipo de efeito colateral ou alteração genética que a vacina poderia provocar - ou, ainda muito mais grave, que esta poderia provocar aids – fato pelo qual, aliás, em muito boa hora, está sendo processado.
Teve ainda todo o episódio do tal do tratamento precoce, com a utilização de medicamentos comprovadamente ineficazes, com especial destaque para a cloroquina, usada para o tratamento da malária e a ivermectina, para tratamento de vermes. Também é preciso lembrar da guerra que declarou aos prefeitos e governadores que monitoravam a situação da transmissão do vírus e, de acordo com as taxas apuradas e as melhores práticas, decretavam o afastamento social e lockdowns. Guerra esta promovida pelo presidente que, açodada e comodamente, se baseava na teoria equivocada e já na ocasião questionada, da imunidade de rebanho, a qual preconizava que a contaminação espontânea das pessoas induziria à imunização natural, sem a necessidade de vacinação. Teoria esta baseada em achismos de gente que, pela formação na área da saúde, deveria estar respondendo a processo por induzir milhões a acreditarem num fato sem base científica em relação a um vírus cujo comportamento e evolução não se sabia ainda se podia se aplicar esse entendimento, dado a rapidez da transmissão, as evidências de recontaminação das pessoas e as mutações que sofria.
Enfim, todos estes exemplos de mentiras que, os estudiosos apontam, foram responsáveis por pelo menos umas 400 mil mortes, numa triste e clara evidência do que o título desse artigo afirma: a mentira pode matar.
No entanto, não é apenas sobre o pano de fundo da pandemia que desejo ilustrar a tese de que a mentira pode matar, quando praticada por um agente público ou por alguém que tem o dever de ofício de dizer a verdade.
A atual equipe de transição do governo eleito vem demonstrando também que em outras áreas as mentiras do governo Bolsonaro, se não provocaram mortes tão diretamente como as provocadas durante a pandemia – o que por si só já deveria ter sido motivo para a inviabilização desse governo –, causaram outros tantos danos que certamente levaram ao adoecimento e à morte de outros tantos milhares de brasileiros.
Nesse sentido, a nota divulgada hoje, dia 13/12/2022, pelo grupo de transição do Planejamento, Orçamento e Gestão sobre a atuação do governo Bolsonaro nessas três áreas é esclarecedora. Não à toa o coordenador técnico do grupo, Aloísio Mercadante, foi taxativo: “o governo Bolsonaro quebrou o Estado brasileiro!” Advertência, contudo, que logo se faz seguir por uma ressalva: “Quebrou para os que mais precisam, não para o andar de cima.”
Vejamos, pois, o teor da nota, na íntegra, para entendermos o que estou falando:
O governo Bolsonaro quebrou o Estado brasileiro, comprometendo serviços essenciais e investimentos públicos fundamentais. Ao longo de quatro anos, Bolsonaro utilizou recursos extra teto cinco vezes, em um montante de cerca de R$ 800 bilhões.
Para o andar de cima, o Estado não está quebrado. Para os que mais precisam, há um verdadeiro apagão fiscal, que compromete os serviços públicos essenciais aos mais pobres e que não assegura o mínimo para a sobrevivência, conforme vem apresentando o Gabinete de Transição ao longo de entrevistas coletivas temáticas.
Só para mencionar alguns exemplos:
O Bolsa Família ficou congelado durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro. Nas vésperas do ano eleitoral, foi criado o Auxílio Brasil, que começou a ser pago em novembro 2021.
O desenho mal feito, a ampliação açodada por motivos eleitorais do número de beneficiários e a completa desinformação às famílias geraram um aumento de mais de 200% no número de cadastro de pessoas que declararam morar sozinhas (unipessoais). O TCU estima que perto de 3,5 milhões desses beneficiários sejam irregulares. Os custos desses erros e desvios pode ter chegado a mais de R$ 6 bilhões.
Houve um desmonte do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que é a porta de entrada da população empobrecida e vulnerável ao Estado. O SUAS, para funcionar, precisaria de, no mínimo, R$ 2,5 bilhões. Bolsonaro deixou um orçamento de R$ 49 milhões em 2023, valor que não suporta 10 dias de funcionamento do Sistema.
Congelamento da merenda escolar há cinco anos na parcela complementar repassada pela União.
A desnutrição infantil marcou em 2021 o pior índice dos últimos 14 anos, segundo estudo da Observa Infância, da Fiocruz. Desde 2008, quando foi iniciada a série histórica da consolidação de dados, houve aumento de quase 11% do número de hospitalizações de bebês por carência alimentar no Brasil. 33,1 milhões de brasileiros passam fome e 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país, vive com algum grau de insegurança alimentar. Formas mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave) atingem populações nas regiões Norte (45,2%) e Nordeste (38,4%) (II VIGISAN, 2022).
O governo Bolsonaro não contratou a impressão de livros didáticos, colocando em risco a qualidade do ano letivo em 2023.
Atrasos no pagamento de 200 mil bolsistas da Capes e 14 mil residentes médicos, que só tiveram as bolsas liberadas após denúncia do Governo de Transição.
Bolsonaro deixou R$ 3,2 bilhões parados no Fundo Amazônia, conforme alerta do STF e de relatórios da sociedade civil.
Faltam recursos para a pasta do Meio Ambiente. Dos R$ 4,6 trilhões de despesas do Orçamento de 2022, menos de R$ 3 bilhões são empregados na estrutura e nas políticas públicas do Ministério do Meio Ambiente e suas autarquias.
O plano vacinal contra Covid-19 tem sido ineficiente: 85 milhões de pessoas não têm o esquema de reforço completo, 28 milhões não tomaram nenhuma dose e o país tem baixíssima cobertura para as crianças entre seis meses e cinco anos (a cada dois dias morre uma criança de Covid-19 no país).
Baixa cobertura de todas as vacinas que compõe o PNI: vacinas como BCG, meningococo C e poliomielite, que tinham coberturas próximas de 100% em 2015 e de mais de 80% em 2019, apresentaram cobertura vacinal por volta de 70% em 2021. O risco de retorno da Poliomielite é iminente no país.
Desde o início da pandemia, houve queda acentuada de atendimentos, de exames diagnósticos e procedimentos terapêuticos. A estimativa de queda é superior a 2 milhões de procedimentos.
Cortes no orçamento de 2023, de R$ 10,47 bilhões, inviabilizam programas e ações estratégicas do SUS, tais como: Farmácia Popular -R$ 1,5 bilhão; saúde indígena -R$ 900 milhões; programa HIV/AIDS – R$ 400 milhões.
Faltam recursos para ações da Defesa Civil, para caminhões pipa no abastecimento emergencial de água e obras de segurança hídrica e de prevenção para a população em áreas de risco. Há a necessidade de R$ 40 milhões para bombear a água do Rio São Francisco para a Paraíba, porque quase 1 milhão de pessoas, sobretudo na região de Campina Grande, podem ficar, no futuro, sem o fornecimento de água. As obras de manutenção da transposição demandam R$ 1 bilhão.
Os consumidores de energia elétrica pagarão uma conta de R$ 500 bilhões nos próximos anos, em razão de uma série de ações tomadas pelo governo Bolsonaro.
Se não houvesse uma realidade de colapso fiscal, que se sobrepõe à narrativa do ministro Paulo Guedes, o que justificaria a consulta feita pelo próprio governo Bolsonaro ao TCU para a liberação de recursos extraordinários por Medida Provisória? Iniciativa essa que culminou inclusive no pedido de demissão do então secretário especial do Tesouro Nacional.
A verdade é que com Bolsonaro não há previsão orçamentária para o Estado seguir funcionando em suas atividades essenciais no final de 2022 e na projeção para 2023. O governo eleito, junto com o Congresso Nacional, é quem irá resolver a questão fiscal do país, inclusive das contas deste final de ano, com a aprovação da PEC do Bolsa Família e terá que tomar medidas adicionais para aumentar a eficiência do gasto público e de receitas sem o aumento da carga tributária.
Assessoria da Coordenação Técnica do Gabinete de Transição.
A situação encontrada pela equipe de transição, conforme a nota, evidencia, pois, que a peça orçamentária deixada pelo governo Bolsonaro seria nada mais do que uma outra grande mentira que o governo pretendia aplicar no povo brasileiro após as eleições, não fosse a equipe de transição ter descoberto isso antes.
Todas as situações elencadas são evidências de carências que exporiam a população, sobretudo a que mais necessita, aos riscos de total desatendimento, seja na área de segurança alimentar, seja na área de saúde, seja na área da prevenção de desastres entre outras. Situações estas, pois, a evidenciar que a mentira, quando perpetrada por um chefe de governo - o qual, na condição de servidor público número um goza de uma excepcional presunção de legitimidade – tem um poder de destruição ainda maior. Fato que ficou ainda mais evidenciado não apenas por ocasião da pandemia – momento excepcional que só fez ressaltar a inépcia e a má fé desse governo - mas também agora com os achados da equipe de transição, de desmonte de praticamente todas as políticas públicas que atendiam a população mais vulnerável. Desmonte que, se não tem o potencial de matar como tiveram as mentiras praticadas pelo governo durante a pandemia, tem a de desassistir, de abandonar, de relegar ao esquecimento quem mais precisa, o que, ao fim e ao cabo produz o mesmo efeito que a epidemia, pois a fome também mata, assim como também mata, a falta de vacinação, os desastres naturais evitáveis, as doenças não tratadas a tempo, a evasão escolar que leva à criminalidade, ao subemprego e à miséria.
É urgente, pois, que a mentira, quando praticada por agente público, no exercício do cargo seja devidamente criminalizada, não apenas pelos danos reais que pode causar, mas também e sobretudo pelos potenciais, dado que as declarações de um agente público, especialmente quando investido num cargo como a de presidente da República, possui um alcance e duração que vai muito além do que pode se avaliar. Basta ver o que está acontecendo com os índices de vacinação no país, após as declarações do presidente contra a vacina da Covi-19. Todos muito abaixo da média histórica, pondo em risco a vida das pessoas, especialmente de crianças que, indefesas, passam a ser expostas a doenças que já eram consideradas erradicadas no Brasil, por conta das mentiras disseminadas pelo Presidente da República e seus seguidores. Ou o que se vê com a peça orçamentária do país que prevê recursos de ficção para obras e programas essenciais para a vida e a saúde das pessoas.
Todos sabemos que os políticos mentem, mas quando esse político se torna um gestor público, a mentira não pode ficar impune.
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