A internet deu voz a uma legião de idiotas, já dizia o escritor e filósofo italiano Umberto Eco quando as redes sociais começaram a ganhar protagonismo. O que Eco, falecido em 2016, contudo, não considerou é que esses idiotas votam, se elegem e atualmente governam países ou se ensaiam para voltar a governar.
Essencialmente sempre discordei dessa afirmação do escritor italiano por considerá-la um preconceito elitista, pois como ocorre de tempos em tempos – foi assim com o livro impresso, depois com o jornal, o rádio e a televisão - as massas encontram nesses meios uma oportunidade de ganhar alguma visibilidade. A democratização dos meios de comunicação é um fato e uma ocasião única para aqueles que raramente têm voz e vez.
Outro intelectual italiano – Gramsci – já dizia que a transição entre uma nova ordem que ainda não nasceu e um velho mundo que ainda não saiu de cena, normalmente, é uma época dominada por monstros. Foi assim na transição do mundo que antecedeu à I Guerra Mundial para o mundo que veio após a II Grande Guerra, quando, no interregno entre essas duas conflagrações, o fascismo floresceu na Europa e no Leste Asiático. Não por acaso, período em que o rádio, como meio de comunicação de massa, foi protagonista.
As redes sociais inauguraram a comunicação digital no século XXI e, por ser um fenômeno relativamente recente – as primeiras redes de alcance mundial surgiram a partir de 2004 –, não se encontram devidamente regulamentadas, apresentando-se como um vasto campo de possibilidades para serem exploradas, especialmente pelo marketing político e empresarial.
É nesse terreno sem lei onde nascem e prosperam os monstros, sustentados pelas massas cujo gosto, de regra, inclina-se para o mexerico, o escândalo, o grotesco e a mentira - os idiotas, de que falava Humberto Eco. Terreno onde o fundamentalismo religioso e a extrema direita atuam sem qualquer controle. Movidos por projetos de poder distintos, mas muito próximos, esses extremistas usam da estratégia de aliciamento que passa por retroalimentar essas massas com matérias e pautas alinhadas com o seu gosto, gerando engajamento – para usar um termo do jargão das redes. Com pautas negacionistas e anticientíficas, no plano cultural e reacionárias, no plano dos costumes, suscitam a chamada guerra cultural ou guerra santa, ao acusarem os avanços nessas áreas como uma conspiração da esquerda para dominar o mundo - na Europa do final do século XIX era o sionismo, levando ao que depois vimos o que ocorreu durante a II Grande Guerra com os judeus. Hoje é o globalismo, o esquerdismo, o comunismo, o gaysismo destruidores dos costumes e da família.
A intolerância e o ódio ao outro instauram-se como práticas comuns no meio virtual, quando não descambam para o meio físico. As instituições são descredibilizadas por não atenderem mais aos anseios populares, especialmente àquelas ligadas à essência da democracia, como as eleições livres, o voto popular, os partidos políticos e a política como forma de mediação dos conflitos, naturalizando a ideia de que toda forma de acesso ao poder é válida, inclusive com o emprego da força. O que foram os ataques ao Capitólio, nos EUA, em 06/01/2021 e às sedes dos três poderes, em Brasília, em 08/01/2023 senão manifestações desse pensamento?
Como dito, contudo, essa é uma época de transição, quando ainda não aprendemos como lidar com a revolução que as redes sociais trouxeram na comunicação de massa e com o protagonismo que elas ganharam em detrimento das mídias tradicionais.
Urge, no entanto, que aprendamos e aprendamos rápido, estabelecendo regras para esse meio, dado a ameaça que a sua hegemonia, sem controle, vem representando para a democracia em todo o mundo.
É inegável, no entanto, que é preciso preservar o que a democratização dos meios de comunicação, proporcionada pelas redes sociais, trouxe de bom, na medida em que elas representam uma alternativa à mídia tradicional, à forma de realização do debate público e de organização dos movimentos populares, os quais hoje já não dependem mais da institucionalidade de um partido político, de um sindicato ou de outras formas tradicionais para se organizarem, evidenciando uma outra característica desse meio: a ausência de institucionalidade. O que agrada ao público, por não requerer qualquer forma de mediação para que ele se manifeste e se sinta acolhido. Acolhido, aliás, por quem não o menospreza, como fazia Humberto Eco, ao considerá-lo idiota, pois é esse “idiota” hoje que sustenta a ascensão da extrema direita e do fundamentalismo religioso que ameaçam às instituições e a democracia em todo mundo.
Há, pois, que se abolir o preconceito e estabelecer um regramento mínimo no meio digital que iniba a proliferação da desinformação e do extremismo político-religioso, sob pena de termos não apenas que tolerar os tais “idiotas”, mas ser governados por eles.
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